CUBANA

e a gente rala num emprego mixo

insignificante

ganha uma merreca

e engole sapo

leva golpe baixo

a vida inteira,

a gente estuda num curso noturno

estuda quando pode

a vida inteira,

anda de busão que vai sempre lotado

na ida e na volta

a vida inteira,

e a gente come sempre de marmita

ou no bandejão

a vida inteira,

a mesma roupinha

o mesmo sapato

a vida inteira,

e aí vem um burguês

- ou pior ainda -

um pobre de direita

nunca leu um livro

entrou num museu

ou num bom teatro

vem falar bobagem

lembrar de um passado

em que tudo era bom

me dá uma vontade de mudar as coisas

pegar uma foice

pegar um martelo

viajar pra Cuba

e ficar por lá.

MUDOU

 

Mudou o jeito da gente  fazer as coisas

de conversar

de namorar

ser e não ser

Mudou o jeito de olhar dentro do outro

e pesquisar

e descobrir

onde é o perigo

Mudou o jeito de tentar mudar o mundo

olhos abertos

sem a boca

e sem  nariz.

TENTAÇÃO

Uma vontade de abraço
de beijo
misturar líquido e sólido

Uma vontade de cheiro
de gosto
doce e salgado e os dois juntos

Uma vontade de quente
de frio

de experimentar por inteiro

Depois  ficar  sem destino
sem noção
sem saber se era sim ou era não.

foto - Gregório Gruber

ELE CHEGOU

Ele chegou
fez o que fez
e foi embora para sempre

Pisou a rosa
e arrancou
o girassol do meu canteiro

Soltou o pássaro
e jogou
meu linho branco sobre a lama

Fez o que fez
e foi embora
e me deixou aqui, sem rumo.

foto -  Nicoletta Ceccoli

MERGULHO

à noite
quando o mundo dorme
(ou finge dormir)

o sabiá vago
volta para o alto da alta palmeira
onde fica mudo

e o medo

eterno

se encolhe no escuro fundo do abismo

eu saio
em segredo
sem fazer barulho de dentro da toca 

eu saio

da máscara
saio da armadura e mergulho em mim.